Reforma tributária, envelhecimento e as ideias de Piketty

Chile e França promoveram, nos últimos dias, alterações consideráveis em seus sistemas tributários. Em resumo, reconheceram erros cometidos por economistas liberais, no passado, ao radicalizarem a regressividade de seus sistemas. O resultado foi uma carga muito grande de impostos sobre os mais pobres e o aumento da desigualdade social. A outra consequência foi a redução da capacidade de o Estado manter um nível civilizado de proteção social (aposentadorias), diminuindo, portanto, os serviços (em qualidade e quantidade) de saúde e educação.

Com as sucessivas ou cíclicas crises na economia, o aumento do desemprego de longa duração e, sobretudo, o envelhecimento populacional, os desdobramentos do sistema tributário regressivo levaram a um colapso político, uma convulsão social nos dois países. Isso fez os governos do momento cederem e atenderem ao clamor de milhões de manifestantes, de ponta a ponta do leque ideológico, por maior taxação dos ricos e aumentos nos valores das aposentadorias.

Emmanuel Macron prometera isso na campanha e, agora, reduz a carga tributária dos aposentados. No Chile, a situação é bem pior. Além de baixas aposentadorias, a educação endividou as famílias e a saúde custa caro para quem não tem emprego formal (modelo norte-americano). Aquela promessa liberal de que os ricos e as empresas com baixa carga tributária investiriam mais, na realidade, tornou-se concentração de riqueza em mãos de grupos políticos poderosos, que se unem à religião, com grupos como a Opus Dei, e dominam o setor de educação privada.

No Brasil, caminhamos para esse modelo. Fizemos errado de não privilegiar a reforma tributária – essa sim, a mãe de todas – e optar pela Previdência. Sempre defendi que a reforma tributária deveria vir antes de qualquer alteração nas aposentadorias. Mas os liberais nunca aceitam isso, consideram uma tremenda bobagem. Ou acreditam que, politicamente, as duas reformas poderiam caminhar juntas. Coisa de quem nunca frequentou o plenário do Congresso e desconhece a política como ela é.

Agora, França e Chile fazem exatamente isso. Cobram mais impostos de ricos para financiar a previdência e outras áreas sociais e foram obrigados, pela força das ruas, a reduzir a carga tributária de aposentados. A questão é que o lucro já foi privatizado e, agora, mais uma vez, os prejuízos serão de toda a sociedade. O Brasil vai iniciar o processo de debate da reforma tributária e, certamente, será influenciado por essas mudanças na França e, principalmente, no Chile.

Em seu novo livro “Capital et ideologie” (ainda sem tradução em português, Ed. Seuil, 1.200 páginas), o economista Thomas Piketty faz uma espécie de arqueologia dos sistemas tributários ao longo da história e nos mostra como sempre foi muito difícil fazer ricos pagarem mais impostos em nome de capacitar o Estado para atender às necessidades dos mais pobres. Ele historia, de maneira exemplar, como o sistema fiscal sempre sustentou e delineou o poder.

Piketty descreve como foram construídos os “regimes desiguais” amparados por uma certa “ideologia proprietarista” historicamente protegida pelo Estado. Ele destaca que, mesmo em seu auge no pós-guerra, a social-democracia foi incapaz de quebrar ou inverter essa lógica proprietarista. “Só com povo nas ruas”, diz ele, “é que as coisas mudam”.

Essa configuração tributária desigual e crônica, diz o autor, está diretamente ligada com o ódio aos pobres, o racismo, o machismo (patriarcalismo), a hegemonia branca, a meritocracia e todas as discriminações que vivenciamos hoje, antagônicas de um ambiente verdadeiramente democrático ou igualitário. “Cada época produz um conjunto de discursos e de ideologias contraditórias visando legitimar a desigualdade”, escreve.

Esse regime desigual está sustentado em um tripé: a propriedade (acúmulo patrimonial), a educação (a dificuldade de acesso, manter o monopólio do conhecimento para poucos) e o fiscal propriamente dito (a tributação desigual entre ricos e pobres). Ele propõe, portanto, um outro entendimento sobre propriedade.

Além da propriedade social (ou pública) e da propriedade privada, existiria, para ele, uma “propriedade provisória”. Portanto, um sistema fiscal igualitário implicaria em um imposto sobre a renda, um imposto sobre a herança e um imposto sobre o patrimônio (fortunas). Esse último seria anual e interpretaria uma pequena parte do patrimônio dos muito ricos como uma “propriedade provisória”, que deve ser retornada à sociedade pela tributação. Esse tipo de imposto provocaria “uma circulação da riqueza” e “impediria a persistência da desigualdade social”.

Um sistema progressivo seguindo esse modelo, segundo Piketty, é mais valioso para a redução das desigualdades até mesmo do que uma reforma agrária. Enquanto essa pode ter impacto em um momento e ir reduzindo esse impacto ao longo do tempo, o sistema progressivo é perene. “É uma reforma agrária permanente”, escreve.

Esse novo sistema exigiria uma atuação global, superar as fronteiras nacionais, para taxar fortunas alhures ou impedir a evasão fiscal (ou a fuga de milionários de forma cínica e descarada). Essa arrecadação, segundo ele imagina, seria suficiente para sustentar não apenas as demandas da sociedade envelhecida (custear a previdência como já ocorrera, ele lembra, nos EUA nos séculos XVIII e XIX), mas também garantir um programa de renda básica cidadã para os mais jovens. 

Acredito que, com a publicação do livro no Brasil, Piketty influenciará muito no debate da reforma tributária por aqui. Até porque os fatos no Chile e na França lhe são favoráveis. Não quer dizer que seus argumentos irão convencer ditos intelectuais liberais que, certa vez, em programa de televisão no Brasil, diante do autor, tiveram o desatino de, na falta de base acadêmica para a discussão de alto nível, acusar Piketty de ter “inveja de rico” só porque defendia um imposto sobre fortunas.

Piketty alerta que ou as sociedades copiam o que começam – mesmo timidamente – a fazer a França e o Chile ou provavelmente teremos no futuro próximo novas e “grandes mobilizações transformadoras”, como esses países tiveram, devido ao aumento da injustiça social. A demografia jogará um papel relevante nessa realidade. A desigualdade primária (antes dos impostos) precisa ser combatida com urgência, defende ele, em todo o mundo, com alterações nos sistemas legal, fiscal e educacional. 

Diferente do livro anterior, Piketty, desta vez, vale acrescentar, oferece maior destaque à regulamentação do capital, tema ignorado por ele no seu best-seller “O Capital no século XXI” e fonte de críticas. Também não explora, de forma tão enfática a fórmula r>g, foco do outro livro e define sua meta na construção de um “socialismo participativo”, segundo ele, neste momento histórico, fundamental para conter o populismo e o fascismo. Também diferente do livro anterior, e motivo deste, é o destaque para o sistema tributário como fator mais importante do que as guerras, historicamente, para distribuição de riqueza no mundo. Piketty está totalmente certo? Provavelmente, não. Mas seu livro é indispensável para quem quiser acompanhar o debate econômico atual.

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