Política nacional de cuidado é investimento em infraestrutura

Publicado na seção Tendências/Debates do jornal Folha de S. Paulo, em 15/02/2023

Guita Grin Debert

Antropóloga, é professora emérita da Unicamp e pesquisadora da Fapesp e do CNPq; autora de “A Reinvenção da Velhice” (Edusp)

Jorge Félix

Doutor em sociologia (PUC-SP), é professor da pós-graduação em gerontologia da USP e pesquisador da Fapesp; autor de “Economia da Longevidade” (ed. 106 Ideias)

Em discurso anual à nação, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, dedicou um grande trecho ao tema do cuidado. Seu esforço foi convencer os parlamentares republicanos a ampliarem os recursos nos programas de saúde, sobretudo o Medicare, que atende principalmente idosos, e cuidados de crianças, pessoas com deficiência, trabalhadores doentes e veteranos de guerra. Foi um discurso contra o preconceito típico que a visão fiscalista da economia costuma ter sobre os gastos sociais. Com o acelerado envelhecimento da população do Brasil e o debate sobre uma Política Nacional de Cuidados Continuados na agenda, é preciso atentar para a perspectiva trazida por Biden.

Apesar de ampla bibliografia sobre o tema destacar o seu potencial de geração de valor, a ponto de hoje a economia do cuidado ser uma profícua área de pesquisa, muitos economistas tendem a enxergar a velhice pelas lentes assistencialistas ou, na melhor das hipóteses, apenas como um dever moral, humanista e solidário, como se não houvesse nenhuma justificativa econômica para a alocação de recursos públicos no cuidado.

Alguns fatos recentes, porém, mostram uma tendência de mudança. A economista Cecília Todesca escolheu o tema da economia do cuidado como plataforma para a disputa pela presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento, no fim do ano passado, cobrando do BID uma nova posição sobre o tema. Como abordado por nós aqui nesta Folha (“Precisamos quebrar o silêncio e politizar o cuidado de idosos”, 27/7/22), o projeto da nova Constituição do Chile também abarcava uma ousada Política Integrada de Cuidado. Cita-se ainda os pacotes econômicos pós-pandemia de Biden e de Emmanuel Macron, com ênfase no aumento salarial dos profissionais do cuidado. O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, assumiu a presidência do G20 falando em dar prioridade a cuidar das pessoas. A despeito da concretização ou não dessas intenções manifestas, o importante é sublinhar que elas estão menos no âmbito da dívida moral com vulnerabilizados e mais no campo econômico.

Em setembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em reunião com militantes e pesquisadores da área do envelhecimento, assumiu relevantes compromissos em saúde, Previdência, educação e cuidados continuados. No entanto, Lula apresentou argumentos ainda ligados a questões alheias à economia. “Nós precisamos ensinar as pessoas a cuidar, ser mais humanistas, mais fraternas”, disse. Em sua visão, que não está errada, as pessoas idosas têm direito a uma proteção do Estado porque já contribuíram para a sociedade. Sem descredenciar esses argumentos, sabemos o quanto o “mercado” é resistente a justificativas de gastos apenas por razões humanitárias. Não é só por isso que é urgente entender o cuidado como investimento em infraestrutura.

É essa a visão da britânica Susan Himmelweit, economista do cuidado e professora emérita da Open University. Seus estudos econométricos mostram que o investimento em cuidado por parte do Estado pode ser tão relevante quanto o da indústria da construção e, assim, deve ser encarado como um segmento da infraestrutura, pois garante retornos de longo prazo. Himmelweit mostrou como o investimento público em cuidado gera mais empregos do que no setor de construção. No entanto, os trabalhadores do cuidado recebem remuneração e reconhecimento menores. Ela defende que a alocação de recursos para o cuidado é eficiente e gera receita e os gastos serão, portanto, compensados satisfatoriamente na política fiscal. Sem citá-la, Biden concordou: “Quando fazemos todas essas coisas, aumentamos a produtividade, aumentamos o crescimento econômico”.

No momento em que se inicia o debate aqui de uma política de cuidado, em meio ao tradicional conflito orçamentário, é preciso trazer à luz novas interpretações de novos campos de conhecimento. Talvez esses argumentos sejam tão fortes quanto o apelo ao humanismo em tempos tão difíceis que vive o mundo.

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