Morte, a resposta do Posto Ipiranga

Jorge Felix

A frase do ministro da Economia, Paulo Guedes, clamando pela morte de brasileiros e brasileiras o quanto antes para debelar a crise do Sistema Único de Saúde e, consequentemente, as agruras fiscais do país é causadora de parca surpresa. Ela deve ser analisada em várias dimensões. Do ponto de vista político, é apenas coerente com um governo que, desde a campanha eleitoral, fez da morte o seu objetivo principal. Jair Bolsonaro conquistou mentes e corações usando o símbolo de uma arma, amplamente adotado por seu eleitorado em atos nas ruas e nas redes sociais. Seus atos de ampliação do armamento da população dão a tônica de suas prioridades. Talvez esse eleitorado tenha tido dificuldade para refletir sobre aquele símbolo da “arminha” feita com a mão, que ele inclusive ensinou a uma criança. Era a pregação da morte. Enquanto essa pregação era contra “os outros”, ela foi motivo de risos e apoios. Quando a Covid-19 trouxe a morte para a família e os amigos ou para bem perto de cada um que o referendou na urna, a “brincadeira” começou a perder um pouco a graça. Mas a continuidade da diversão, agora, é garantida por Guedes.

Do ponto de vista científico, Guedes assina sua falência como economista. Ao dizer que “todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130. Não há capacidade de investimento para que o Estado consiga acompanhar”, aquele ministro vendido ao eleitorado como o economista com respostas para tudo a ponto de ser apelidado pelo candidato de “Posto Ipiranga” em alusão à publicidade, reconhece que nunca teve conhecimento científico para enfrentar a responsabilidade que lhe foi delegada pelas urnas. O objetivo maior da Economia, como um ramo das ciências sociais, é garantir a vida, oferecer respostas às ameaças ao bem-estar social, ou seja, servir ao Homem. Todos os grandes autores de livros textos de economia explicam sua filiação à ciência social com a preocupação deles de adquirirem conhecimento para melhorar a vida das pessoas.

O Estado Moderno sempre alimentou a pretensão de que a ciência e a ordem social trariam o progresso e aumentariam a expectativa de vida dos seres humanos com bem-estar e previsibilidade. Essa talvez seja a grande vitória da economia capitalista, a qual o ministro diz ser defensor. Ou, no mínimo, da social-democracia. O socialismo falhou nessa escalada. As maiores conquistas em expectativas de vida foram registradas nos países capitalistas, como Japão, Alemanha, Itália. A ciência, de fato, obteve êxito nesse aspecto, mas, historicamente, as condições sociais gritaram mais alto nessa escalada.

A Economia de um ministro que aponta a morte como solução para os problemas fiscais do país é, portanto, uma ciência falsa e/ou um modelo econômico falido. E é tão falido esse modelo porque Guedes repete a mesma frase de seu colega japonês, Taro Aso, também um liberal apaixonado. Portanto, é legítimo estabelecer um padrão de resposta globalizada de “Postos Ipirangas” mundo afora que testemunham a incompetência de seus modelos econômicos para dar respostas às demandas sociais do século XXI. A função da teoria é emprestar previsibilidade à realidade e, assim, evitar ou solucionar problemas. Se as teorias do ministro não cumprem essa tarefa não prestam para nada.

Quanto ao ponto de vista técnico, Guedes demonstra um total despreparo, desinformação e/ou, talvez com mais intensidade, interesse na defesa de seus dogmas sempre favoráveis a determinados setores privilegiados da sociedade. Uma biblioteca de estudos científicos demonstra que os custos de saúde têm menos impacto da dinâmica demográfica do que do avanço da ciência. É a sofisticação da medicina, a tecnologia, os novos tratamentos, a capacidade da medicina diagnóstica, a necessidade de qualificação do pessoal de saúde e a carência industrial do país nessa área que aumentam os custos. Muito mais do que a maiori utilização do sistema pelos idosos.  

No âmbito da previdência, a questão principal hoje no Brasil é a informalidade – maior do que a metade da força de trabalho -, a desregulamentação das relações trabalhistas, permitindo evasão (para a previdência privada, o que é apoiado pelo projeto de Guedes) e a sonegação. Além dos privilégios de grupos como magistrados, Ministério Público e militares. Aqueles cerca de 70% de aposentados do INSS que recebem apenas um salário mínimo têm baixa expectativa de vida. São os deixados para trás na conquista da longevidade.   A última dimensão a ser analisada na frase de Guedes é o aspecto Humanista. Esse é simples de explicar e também causa espanto como foi sedutor para os eleitores, inclusive ativistas da causa dos direitos da pessoa idosa. O candidato Bolsonaro construiu sua campanha contra tudo o que era de mais humano: contra a vida, a diversidade, a igualdade, os direitos de minorias. Os opositores viraram “essa gente dos direitos humanos”. Guedes, com sua frase, apenas obriga tanto o eleitor quanto os integrantes do governo – de vários escalões – a se lembrarem que são humanos. E humanos morrem. Todos aqueles que fazem política nas raias do fascismo se deparam, em algum momento, com o risco de morte ampliado pelo Estado. Nesse ponto, se humanizam. Como é o caso de um colega de Guedes, o ministro general Luiz Eduardo Ramos, 64 anos, que se vacinou escondido do chefe, e disse uma frase ilimitadamente humana: “Eu quero viver, pô!”.  Para alguns, às vezes, ainda há tempo.

Doutor em Ciências Sociais, professor de Gerontologia da Universidade de São Paulo (USP-EACH), pesquisador da Fapesp e autor do livro “Economia da Longevidade” (Editora 106 Ideias).

3 Comentários

  1. Além da questão humanitária e econômica, tem outra questão que é de bom senso. O estudo da Ana Amélia Camarano mostra que a morte dos idosos está trazendo consequências econômicas para os mais jovens, justamente porque são os mais velhos que estão sustentando as famílias.

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