A Covid-19 e os nossos cuidadores

Pandemia emerge a urgência de politizar o cuidado

Guita Grin Debert e Jorge Félix

Num artigo publicado pelo jornal francês Le Monde no mês passado, a jornalista Claire Legros chama a atenção para o ritual que marcou a quarentena naquele país. Todas as noites, pontualmente às oito horas, as janelas se abriam para aplaudir os cuidadores. Os franceses são entusiasticamente agradecidos aos profissionais que, apesar do perigo de contágio, permanecem no exercício de suas atividades. Eles são os profissionais da saúde, os cuidadores de idosos, os trabalhadores nos supermercados, os agentes de segurança e até mesmo os lixeiros – esses encontram bilhetes de agradecimento nas lixeiras que vão recolhendo. Por aqui, corais e orquestras, redes sociais, televisão e jornais abrem espaço exclusivo para homenagear esses profissionais.

Esse é um reconhecimento inédito do que se pode considerar um segredo público. Há segredos que são mantidos à parte do público, mas há também segredos que o próprio público escolhe segredar, como já disse a crítica literária  Katleen Woodward (autora de “Um segredo público: o viver assistido, cuidadores, globalização”, publicado, em 2016, no Dossiê Gênero e Cuidado, dos  Cadernos do Pagu, da Unicamp).

A negação escandalosa da centralidade da nossa dependência do cuidado é um segredo público, que decidimos esconder de nós mesmos. Como diz a psicóloga Pascale Molinier é algo extremamente novo a atenção que está sendo dispensada às pessoas que antes, se supunha, existiam para nos servir e cuja função aparece hoje como central ao funcionamento da nossa sociedade, sobretudo para garantir o mínimo da atividade econômica. Em que medida essa nova consciência que emerge com a pandemia pode reverter o ordenamento das profissões e transformar a organização das nossas sociedades?

A pandemia da Covid -19 bruscamente apontou a vulnerabilidade em que todos nós vivemos e exige que repensemos a nossa hierarquia social, na qual atividades essenciais para nossa sobrevivência estão nos escalões mais baixos de prestígio, de reconhecimento e de remuneração. A quarentena evidencia as relações de dominação e desigualdade, acentuando a importância desses serviços e do trabalho de cuidado que é realizado sobretudo por mulheres ou por aqueles homens que compõem os setores mais desfavorecidos da população.

A tradição filosófica liberal se concentra numa visão do mundo na qual o homem racional e autônomo realiza seus projetos de vida no domínio público e supõe que as pessoas se encontram isoladas e que o self é anterior às suas atividades e às conexões com os outros. Opera-se uma divisão de funções entre a esfera masculina, compreendendo os assuntos públicos e direitos legais, em oposição à esfera privada, na qual a mulher é pensada como um ser dependente, responsável pelo cuidado dos outros, pelas obrigações familiares e pelo trabalho não remunerado. Por isso mesmo, o trabalho de cuidado é invisível, mitificado e opressivo.

Essa visão que herdamos do cuidado tem a ver com o “culto à domesticidade” – um ideal desenvolvido no século XIX, com a entrada dos homens no mercado de trabalho capitalista e com a exclusão das mulheres dos setores médios e altos da população do trabalho remunerado. O culto da domesticidade realçou a sensibilidade moral e emocional das mulheres e enfatizou a obrigação de cuidar, em oposição ao direito de competir e expressar interesses individuais próprios dos homens, e realçou a natureza extremamente privada do cuidado, em oposição aos negócios públicos e aos ganhos no mercado.

O cuidador é uma figura própria das grandes metrópoles, das “cidades globais”, como mostra a socióloga Saskia Sassen, nas quais a demanda por profissionais altamente qualificados dispara e as mulheres de níveis educacionais mais altos passam a ser incorporadas nesse mercado de trabalho extremamente competitivo, que demanda engajamento intenso em longas horas de trabalho. Nessas cidades cresce o número das, ironicamente, chamadas “unidades domésticas sem esposas” em que os casais adultos – compostos de um homem e uma mulher ou de dois homens ou de duas mulheres – alocam no mercado as tarefas domésticas e de cuidado.

Nosso desafio é politizar o cuidado. Reconhecer que questões que até muito recentemente eram tidas como próprias da esfera privada envolvem obrigações do Estado e ganham novas configurações no mundo contemporâneo. Esse desafio é giganteado nos contextos de crises econômicas, de estagnação dos serviços públicos de bem-estar, de prolongamento da vida humana, de aumento da proporção de idosos na população que, entre outras questões, transformaram a dependência num risco social e a questão do cuidado numa preocupação política.

Politizar o cuidado é reconhecer que a desvalorização destas funções é fruto de uma sociedade construída na negação e na invisibilidade da nossa dependência do cuidado, da nossa ilusão de uma vida livre e autônoma, quando de fato essa autonomia depende de um conjunto de indivíduos que se ocupam da nossa vida cotidiana. Só quando nos confrontamos com uma mudança radical – fruto da doença, da velhice dependente ou de uma catástrofe – tomamos consciência da nossa extrema dependência de outros para que necessidades vitais sejam realizadas.

No Brasil, a tarefa de politizar o cuidado avançou com a regulamentação da profissão dos trabalhadores domésticos, em 2013. Mas, infelizmente, preferiu manter o segredo no caso dos cuidadores de idosos, crianças e pessoas com deficiência ou doença rara. Depois de tramitar por mais de 12 anos no Legislativo, o Projeto de Lei 11/16 que regulamentava a profissão, aprovado no Senado, foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro, com a justificativa de que a proposta feria o Artigo 5º, inciso XIII, pois restringiria o livre exercício profissional, na opinião do Ministério da Economia, autor da recomendação do veto. A preferência pela manutenção dessa invisibilidade, porém, enfrenta agora a força da pandemia para trazer à tona dores sociais antes anestesiadas por escolhas políticas.

O veto se deu praticamente em silêncio. Uma notícia aqui, outra ali. O fato foi naturalizado na rotina da burocracia de Brasília. Sem reações palpáveis. O Legislativo acatou a decisão de veto do Executivo. No entanto, o olhar economicista tem suas consequências. A sociedade envelhecida que o Brasil já é cobra outras respostas quando menos se espera, basta que a dinâmica demográfica se cruze com outras realidades ou tendências globais do século XXI. De acordo com o Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento (OLHE), ong especializada na formação de cuidadores, desde 2015, essa é a profissão que mais cresce no Brasil. Esse imenso contingente que forja a “economia do cuidado”, como definiu a socióloga norte-americana Viviana Zelizer, engrossa as fileiras da informalidade e do abstrato do trabalho nas cidades globais.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) acaba de divulgar um guia especial sobre o tema do cuidado de longa duração após constatar que a letalidade da Covi-19 entre os idosos residentes em instituições para a velhice variou de 40% a 60% do total entre os países com transmissão comunitária do novo coronavírus. “Essa pandemia tem refletido nos cantos negligenciados e subvalorizados da nossa sociedade”, afirma Hans Henri P. Kluge, diretor regional da OMS para a Europa. “Em toda a região europeia da OMS, os cuidados de longa duração têm sido notoriamente negligenciados. Mas não deve ser assim. Olhando para o futuro e fazendo a transição para uma nova normalidade, temos um claro argumento para investir na criação de sistemas de assistência integrados, centrados na pessoa e de longo prazo em cada país.”

O primeiro país, ao que parece, a dar um passo na politização dos direitos dos trabalhadores do cuidado é a França. Na semana passada, deputados do partido da base do governo Emmanuel Macron apresentaram projeto para a “dependência” se tornar um quinto pilar do sistema de Seguridade Social do país (ao lado da previdência, licença médica, benefícios para a família e acidente de trabalho). No domingo, dia 14 de junho, Macron, em seu quarto pronunciamento público sobre a pandemia, citou os cuidados para idosos e os profissionais como parte importante de sua estratégia de retomada.

 No Brasil, chegou-se a discutir exatamente essa hipótese, em 2010, a partir de provocação da economista Ana Amélia Camarano no livro “Cuidados de Longa Duração para Idosos: um novo risco a ser assumido?”, publicado pelo Ipea. Ao menos o debate, por aqui, estava nesse patamar. Sim, retrocedemos. A sociedade escolheu, deliberadamente, segredar os cuidados. A pandemia, porém, agora faz gritar e denunciar este escândalo justamente pelo lado econômico.  Os aplausos, por todo o mundo, quebram o silêncio. E clamam pela urgência de repensar a valorização de cuidadores, integrando-os em um sistema formal de trabalho. Ignorar a emergência de politizar o cuidado é apenas adiar a sua revelação num futuro ainda mais envelhecido.  Desta vez, porém, de forma bem mais barulhenta, como sempre ocorre quando escândalos se tornam temas do debate público.

Publicado no jornal Valor Econômico, no caderno EU & Fim de Semana, em 26/06/2020

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*