A ‘uberização’ do cuidado e a mulher

Guita G. Debert e Jorge Felix

Existem várias dimensões da desigualdade de gênero no mundo do trabalho e, nas últimas semanas, algumas pesquisas evidenciaram como a pandemia e o “novo normal” do home office sobrecarregou mais as mulheres do que os homens na tarefa do cuidado. Qual o impacto da variável “cuidado” na produtividade da economia? Essa é uma questão rara nas avaliações dos economistas. O cenário “pós-Covid” (seja lá o que for o significado dessa expressão ainda bastante subjetiva) exigirá maior atenção a esse ponto.

Metade das mulheres entrevistadas pelo instituto Gênero e Número e pela Sempreviva Organização Feminista passou a cuidar de outra pessoa no isolamento social. Já o Datafolha mostrou que 64,5% têm dificuldades no trabalho remoto e mais mulheres (57%) do que homens (21%) acumulam as tarefas domésticas com o emprego à distância.

Sabemos que é sempre arriscado falar mulher ou mulheres no plural generalizador. Seria prudente avaliar o momento do curso da vida. Mulheres casadas com filhos pequenos, é de se imaginar, estão muito mais sobrecarregadas do que as solteiras ou viúvas sem filhos ou com filhos adultos ou do que as que vivem só. As primeiras tiveram que assumir tarefas com crianças sem escolas, com os adultos em tempo integral em casa e sem a ajuda dos avós que agora, como “grupo de risco”, vem seu apoio familiar ganhar ampla visibilidade. 

Na investigação “outras formas de trabalho”, no âmbito da Pnad, na qual o IBGE afere o “cuidado” e o classifica como trabalho ainda que não precificado, nem tratado como parte do PIB, 85,7% das pessoas a partir de 14 anos dizem realizar trabalhos domésticos em sua própria casa ou na de terceiros. No entanto, a parcela feminina era de 92,1% contra 78,6% dos homens. Quanto ao cuidado de pessoas, a taxa de realização era de 31,6%, mas o placar é de 36,8% entre as mulheres e de 25,9% para os homens. Embora o cuidado com crianças e adolescente ainda prevaleça, o IBGE verifica queda nesse segmento e ampliação no cuidado com pessoas idosas.

De qualquer maneira, é preocupante, diante desses dados, tomar conhecimento da proliferação do que foi chamado na imprensa de “espaços informais”, à guisa de creche para crianças, constituídos por mulheres em situação de desemprego. São mães a improvisar creches comunitárias para dar conta dos filhos de vizinhas, sem atender à mínima regulamentação e, portanto, remuneradas de modo similar aos aplicativos de transporte ou entrega à domicílio, isto é, uma relação que podemos chamar, para usar o neologismo do momento, de “uberização do cuidado”.

Tal qual a sua matriz, essa também traz consequências sociais inquietantes. Embora seja difícil estabelecer conexões determinantes, a hipótese bastante aceitável é de uma causalidade desse fenômeno pelas dificuldades de acesso ao auxílio emergencial, pelo veto presidencial à prioridade de recebimento desse auxílio pela mulher chefe de domicílio ou pelo desemprego. Mas, sem dúvida, a desigualdade de gênero permeia todo esse quadro assustador que pode piorar pelo aumento do desemprego, pela redução do auxílio emergencial ou pela morte de mais idosos. Como mostra Ana Amélia Camarano, em 60,8% dos domicílios com idosos ou em 20,6% do total dos domicílios brasileiros, a renda do idoso é responsável por mais de 50% do rendimento domiciliar.

          Como alertado pela filósofa italiana Silvia Federici, “sem o trabalho doméstico, o mundo não se move”. Os dados censitários demonstram a evolução da participação feminina no mercado de trabalho e a redução contínua da diferença entre homens e mulheres na população economicamente ativa. Hoje é cada vez mais evidente que a renda familiar depende de pelo menos duas rendas. Some-se a isso a tendência de redução da população em idade ativa devido ao envelhecimento populacional. Está dado, assim, um quadro que atinge diretamente a produtividade da economia.

O home office, sobrecarregando mais as mulheres, em um país sem uma Política Nacional de Cuidados (PNC), acredita-se, terá efeito travador do crescimento econômico nos próximos anos. A pandemia mudou muitos aspectos da nossa vida cotidiana, incluindo o modo como a velhice é tratada. Da visão da “velhice ativa” como indicador de qualidade de vida, disposição e saúde, passamos para a percepção da velhice como um “grupo de risco”. Ou seja, a pandemia evidenciou a heterogeneidade, as várias velhices. Seja no cuidado com crianças ou com pessoas idosas, as mulheres são mais demandadas para essa atribuição e apenas uma PNC, onde seria estabelecida a responsabilidade do Estado, da iniciativa privada e do indivíduo mitigará os efeitos econômicos do cuidado prolongado nos próximos anos.     

 É preciso, portanto, politizar o cuidado. Isso implica em a economia incorporar a questão do cuidado. Em vez de interpretá-lo como gasto ou despesa, seja em termos de benefícios sociais ou salários de profissionais cuidadores, a economia deveria questionar, por exemplo, se o fato de as mulheres serem as que mais abandonam os estudos para cuidar de pessoas terá implicação em uma desqualificação da mão de obra a médio prazo ou pressão de salários dos mais qualificados.  Se no caso de crianças, temos uma “uberização”, na outra ponta, como revela a recém formada Frente Nacional em Defensa das Instituições de Longa Permanência para Idosos, o Brasil tem uma das mais frágeis redes de proteção, sobretudo para a variedade de velhices e suas necessidades.

A ideia de produtividade não é apenas quantitativa, principalmente em uma economia informacional. Ou de mera intensificação tecnológica. Diz respeito também aos arranjos sociais, que possibilitam um “environment” propício à criatividade, inovação e satisfação. Ninguém trabalha de maneira produtiva, criativa ou inovadora preocupado em como estão sendo cuidados seus filhos, pais ou avós. O resultado, em sociedades mais envelhecidas, tem sido absenteísmo ou saída precoce do mercado de trabalho. A pandemia colocou a economia diante da variável do cuidado e, ao ser obrigada a reconhecê-la, nos próximos anos, terá que encarar também a desigualdade de gênero.   

Publicado no jornal Valor Econômico, seção Opinião, em 06/11/2020.

Guita Grin Debert – Professora do Departamento de Antropologia e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp, da Fapesp e do CNPq. Autora de ‘Reinvenção da Velhice’ (Prêmio Jabuti de Ciências Sociais; Edusp).

Jorge Félix – Doutor em Ciências Sociais e professor de Gerontologia da USP-EACH, pesquisador da Fapesp. Autor de ‘Economia da Longevidade’ (Editora 106 Ideias).

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