Uma velhice sem teto

Jorge Felix

Desde a década de 1990, o discurso dos defensores da reforma da Previdência sempre foi a necessidade de acabar com os “privilégios” de um sistema considerado “generoso”. Sucessivos governos, desde então, empreenderam suas reformas, com exceção do fracasso do governo Michel Temer na área – embora extremamente bem-sucedido na usurpação de direitos trabalhistas. Três décadas depois, o país está dividido – ou mal dividido – entre uma casta fazendo jus a salários acima do teto constitucional – muitas vezes somados a aposentadorias – e uma legião de sem-tetos da previdência social. Essa é a verdadeira “bomba-relógio” – para usar a recorrente metáfora dos reformistas – em uma sociedade com acelerado processo de envelhecimento populacional.

               O balanço da reforma previdenciária é cada vez mais desfavorável aos trabalhadores que poupam pelo sistema público. Evidentemente, esse sempre foi o objetivo das reformas: engordar, cada vez mais, a clientela da previdência privada. Nesse aspecto, os reformistas são ainda mais vitoriosos.  O fim maior sempre foi a privatização do sistema, que está se dando sem dizer seu nome. As “reformas” fizeram do teto previdenciário uma ilusão. Hoje menos de 1% dos benefícios pagos (0,89%) pelo RGPS atingem os 6.433,57 reais, valor atual do “teto”. O teto, de fato, estacionou em 2.200,00 reais, valor máximo para 83,44% dos beneficiários, sendo que cerca de 65% recebem apenas um salário mínimo. São esses as maiores vítimas das “reformas”.

               O governo, agora, ardilosamente, estuda propostas para a assistência social e, adianta-se, irá também reduzir o teto de um salário mínimo do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para aqueles deficientes físicos que trabalham formalmente. Desta forma, o que está ocorrendo é uma “reforma” da “reforma”, que além de tornar o sistema público previdenciário um sistema focado nos mais pobres e, mesmo no pilar contributivo, limitar o benefício ao piso vinculado ao salário mínimo, a assistência social passaria a pagar abaixo do salário mínimo. Enquanto o chamado teto, hoje, atinge pouco mais de 300 mil benefícios em um sistema que paga 35,8 milhões de benefícios.

O regime geral, portanto, estabelecido na Constituição de 1988 como um pilar da coesão social assiste, de maneira acelerada, a evasão da classe média e de profissionais liberais. Essa parcela da força de trabalho migrou sua poupança para a velhice para o setor privado, que apresenta “crescimento chinês”, 7% ao ano, alcançando, assim, o objetivo maior das chamadas “reformas”.  A reforma trabalhista de Temer, como dito, impulsionou ainda mais esse mercado, como era também a intenção de sua fracassada proposta de reforma da previdência (vide o artigo 40 do texto original, que privatizava o Funpresp), pois institucionalizou a informalidade no país.

Do ponto de vista da Gerontologia Crítica, vale alertar que esse hoje é o maior risco da coesão social em futuro próximo: o número de não-empregáveis ou integrados de forma desqualificante ao mercado constituirão uma legião de milhões de idosos sem renda. Enquanto aqueles que garantem a aposentadoria, o fazem pelo piso. A desigualdade social inibirá qualquer chance de a economia capitalista manter seu percurso de acumulação.  Talvez, por isso, propostas como a renda básica de cidadania estejam já ganhando tantos novos – e oportunistas – adeptos.

Enquanto milhões vislumbram um teto previdenciário fictício na velhice, os privilégios que seriam estancados pelas reformas liberais crescem de forma cínica. No início de maio, uma canetada de Jair Bolsonaro concedeu a ele próprio, ao vice-presidente e a ministros (quase todos militares) o estouro do teto constitucional do funcionalismo público em até 69%. Pagamentos mensais que, a depender da autoridade, poderão ultrapassar 66 mil reais. Uma elite de mil pessoas em um país de 212 milhões de habitantes terá esse “direito”, diga-se de passagem, uma casta que tem uma expectativa de vida equivalente a um cidadão da Suécia. Em comparação com o RGPS, passam a ganhar acima de apenas 7.600 pessoas que recebem um benefício superior a seis salários mínimos (6.600 reais).

A Gerontologia Crítica referenda a tendência de que o envelhecimento populacional, por si só, já é um fator de concentração de renda, como apontam as Ciências Sociais, sobretudo a Economia. O Brasil segue em ritmo acelerado de envelhecimento e acaba de atingir 40 milhões de idosos (60 anos ou mais) ou 18,9% do total da população. Qualquer medida, portanto, de concentração de renda limita possibilidades de desenvolvimento econômico e compromete mais do que o bem-estar na velhice dos jovens de hoje, mas a nossa própria constituição como Nação.  Talvez isso nada importe para os poucos que assistirão a velhice alheia do alto de uma cobertura.  

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